terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Autoria - Quem sou? 2




Salve Caríssimos!!!



Achei legal, para dar prosseguimento à exposição das minhas ideias, republicar aqui, na íntegra (pois na época havia suprimido algumas informações), uma entrevista que dei dois anos atrás para o site poamix, de propriedade de meu querido amigo e grande fotógrafo Gerson Roldo. O site hoje está extinto, infelizmente, pois foi um dos melhores sites gays já criados, com uma proposta e uma estética maravilhosas.
Assim, lá vai um pouquinho mais de mim, das minhas ideias, das minhas apreensões do mundo! E também um pouco da história da noite em Porto Alegre nestes últimos vinte anos.




Entrevista Luciano Berta (as informações relativas à época não foram atualizadas)


Luciano Berta, 35 anos, nascido em Porto Alegre, é estudante de Ciências Sociais e também ator. Foi transformista no início da década de 90 e frequenta a noite gay desde o final dos anos 80, tendo conhecido diversas casas de diversos gêneros. Ultimamente foi Relações Públicas de conhecida danceteria da capital.



Onde e quando começou sua vida na noite?



Foi na época em que eu iniciei a fazer teatro. Comecei a sair lá pelos idos de 1988, na extinta Danceteria Enigma, na Pinto Bandeira, ainda nos tempos do Eduardo Herrera DJ, hoje vivendo em Londres. Uma casa maravilhosa, linda! As que frequentavam eram conhecidas em geral como “as enigmáticas” pois adoravam fazer tipo, eram tidas como “finas”. Outro lugar maravilhoso da época era o Doce Vício, ao lado do Colégio Militar, um bar e restaurante que servia umas jantas deliciosas, com sugestivos nomes de grandes divas, cantoras e atrizes e também de homossexuais famosos. Era sagrado! Todas antes de irem para o Enigma davam pinta no Doce! A uma e meia era aquela debandada! Quem trabalhava lá era a saudosa Nega Lu. Depois veio o Fly (onde hoje é o Venezianos) e roubou um pouco o público do Doce. O Ocidente foi outra casa que marcou... Nossa! Uma quantidade enorme de tribos e tipos iam lá. Tinha também o Vitraux, bem menor do que é hoje e voltado mais para as lésbicas, ah... e o Discretus, do Demétrio Pompeu, primeiramente instalado pertinho da Assis Brasil e depois indo para a Venâncio, no mesmo local do Ego Sun, que havia fechado. O Discretus foi o nascedouro das maravilhosas casas que ele dirigiu nestes quase vinte anos. Houve também os tantos bares que a Vanda abriu, especialmente um deles, na José Bonifácio, que bombava aos domingos com um show chamado Milk Shake comandado pela Laurita Leão e que começava as seis da tarde e ia até as dez da noite com pencas de bichas novinhas fazendo show. Muitas artistas começaram ali. Victória Principal, Nikki, Iaçana, Ramonna. Era bárbaro. Depois iamos todos para o Discretus assitir o glorioso Viva a Preta, apresentado conjuntamente pelas maravilhosas Dandara Rangel e Gudiara Makimba. Detalhe: com Glória Cristal de coadjuvante e que, com o fim do show, começou a ocupar o espaço e dar vazão a seu enorme talento com o microfone nas mãos. E ainda mais uma infinidades de bares e pequenas boates que fechavam e abriam a cada final de semana.



O que te marcou naquela época?



Nossa! Tanta coisa marca a gente em nossa juventude! Mas acho que o que mais ficou daquele tempo, além das músicas, como as da Madonna, Pet Shop Boys, KonKan, Erasure, Donna Summer e muito mais, foi a sensação do proibido, do gueto. Saíamos só à noite. De dia, se nos encontrávamos na Andradas, por exemplo, nos cumprimentávamos ligeiramente. Quando apareciam “aquelas pintosas” que insistiam em te chamar por algum nome feminino gritando em plena Esquina Democrática as seis da tarde era a morte! De dia só nos encontrávamos aos domingos no Brique da Redenção, eterno point, em volta do antigo brinquedo de auto-choque, chamado de A Casinha da Barbie, em frente do Bar Escaler. Mas o que mais marcou mesmo foi algo triste. A infinidade de amigos e conhecidos perdidos para a AIDS. Mas, felizmente, ainda tenho grandes amizades que guardo no coração e que fiz na época, como o Lauro Ramalho, Victória Principal, o Charles (a Charlene Voluntaire), a Lady Cibele, o Demétrio e por aí vai...



Pulando de 1988 para 2007, o que mais te chama a atenção na noite em geral?



Ih! Ao mesmo tempo que tem muita diferença, tem tanta coisa igual ainda!!! Bom... o número de bares e boates é praticamente o mesmo, só aumentaram de tamanho... e como aumentaram. Hoje ganhamos até as calçadas. Vá na República e confira!
Têm as diferenças de gerações, tipo namorar e ficar, mas isso não é próprio só do mundo gay. Havia mais inocência e as amizades mais fáceis de serem feitas. Não havia bares fim-de-noite, daqueles que vão até o meio-dia bombando, tipo after-hour. No máximo um sopão ou um xis no Van Gogh ou no Claudio´s, o bafão da época.
Têm coisas muito boas que passaram a acontecer. Que mudaram pra melhor. Hoje as travestis participam mais da noite dos gays, antes só aquelas que eram artistas circulavam na noite e as outras tinham seus próprios bares e que não eram frequentados por gays, como o bar da Lola, no Centro. Uma travesti uruguaia que te recebia de penhoir na porta. (risos). Os gays também estão mais na noite hétero, principalmente em raves. Invadimos o teatro como agentes e espectadores, a Redenção com as Paradas, corpos à mostra, a televisão, os shoppings, as ONGs trabalhando horrores por nós, leis que nos protegem. A noite melhorou muito em alguns aspectos, outros nem tanto.



E a música? Mudou?



Na verdade, na minha opinião, não muito. O bom e velho House, filho da Disco, apesar da batida eletrônica bem mais forte, continua dominando as pistas. Acho que por causa do vocal das Divas, talvez. Gay adora uma diva (risos)! Antes, muito artista começava dublando nas pistas, Madonna, Donna Summer, Liza Minelli,... hoje isso continua igual, só mudaram as cantoras, Cher, Cristina Aguillera, Britney, Maya... O que mudou foi a entrada do Electro, do Techno e suas vertentes. Muito gay não frequenta a nossa noite justamente porque não encontra esse tipo de música em nossas pistas, a não ser em raves e casas alternativas. Nós gaúchos somos ainda muito dependentes de outros centros urbanos em termos de música. Quando o pública paulista já está cansando de uma música é aí que aqui começa a estourar. São Paulo ainda é uma referência enorme pra nós. Pra festas, músicas, shows, boates... Talvez a única exceção tenha sido o Enigma com o Herrera, que mandava buscar suas músicas diretamente de Londres e Nova York. Tem muito hit que estourou primeiro aqui. De resto, como pra tudo, ainda somos meio interioranos.



Falaste em artistas. E os shows? Quais eram os artistas que tu vias na época?



Deixa eu ver... Lady Cibele e Rebecca McDonalds, não lembro exatamente qual dos dois eu vi primeiro. Acho que foi a Cibele. Ela apresentava um pocket-show às quartas no Vitraux. MARAVILHOSO! A Cibele, com todo seu charme e inteligência, dublando maravilhosamente grandes cantoras, tipo Rita Lee, Barbra Streisand, Cida Moreira... Fiquei fascinado! Acho que toda minha ideia da arte transformista vem da visão da Cibele no palco e não era à toa que ela tinha no nome o Lady. No palco se transformava realmente numa mulher. Numa mulher daquelas que só um homossexual é capaz de idealizar. Linda, inteligente, charmosa, culta, classuda. Na primeira vez que a vi, depois do show, fiquei mais fascinado ainda, quando percebi que aquela linda mulher do palco era um rapazinho magrelo. Foi nestes shows que também vi pela primeira vez a Laurita, fazendo o clássico número da Nara Leão, com um violão com papeizinhos com as letras da música presos a ele. Hilário. Ah... também o Castanha, com a japonesa Tumiraqueuatiro.




E a Rebecca?



A Rebecca? Acho que a vi na rua, antes de vê-la nos palcos. Foi na Oswaldo. Me apontaram ela dizendo: "aquela ali é a Rebecca!" Na época ela já era um mito! E quando há vi no palco então... dublando La Vie en Rose com a Grace Jones... ou uma música, que não lembro bem o nome, mas fez muito sucesso porque estava num comercial de whisky da época. NOSSA! A dublagem perfeita! Depois veio New York, New York, Vogue... sempre sucessos!



Mudaram as artistas? Mudaram os shows?




Siiiim! Mudaram muito! Bom, nossos grandes e melhores artistas ainda são os mesmo daquela época. Glória Cristal, Dandara, Laurita Leão, Charlene, Castanha, Rebecca. Mas estes são hours-concours. E havia muitos artistas maravilhosos que hoje não fazem mais shows, salvo em casos raros: Guadiara Makimba, Nury Desireé Vanessa DiCarlo, Carla Campos, Maiome Dantas, Daniela Alves, Priscila Góes, Greice Dickson, Tessy Moreno, ufa! Tantas!
Os shows, em geral, eram mais simples, mas tinham mais glamour, mais interpretação. O transformismo puro imperava. Não eram as músicas de pista que elas mais faziam, não. Eram grandes temas românticos, de filmes, grandes cantoras, próprias para grandes interpretações. Shirley Bessey, Barbra Streisand, Tina Turner, Edith Piaf, Liza Minelli, Eartha Kitty, Carmem Miranda, Gal Costa, Rita Lee, Vanuza... O visual podia ser mais pobre, mas em compensação as dublagens... nossa! eram maravilhosas. Aí veio a Madonna e as coisas começaram a mudar...
As boates Discretus e Local Hero do Demétrio investiram muito em shows, com grandes shows montados, artistas do Rio e São Paulo, grandes noites de premiações. Depois o Vitraux foi crescendo e também investindo muito em shows, infraestrutura, etc., se transformando numa grande casa de shows. Depois veio o estilo drag no final dos 90 e mudou tudo isso. O foco saiu da dublagem e foi para o impacto da música, do visual. Não se usa mais quase vestido, as performances parecem ser sempre as mesmas. Mas ganhamos muito em qualidade e produção. A maquiagem melhorou muito. Dia desses olhava uma foto e percebi que antes as bichas não usavam cílios postiços, tu acreditas? Strass era artigo de luxo, muito luxo! Mas o trasformismo ainda resiste, Bruna Diniz, Fabielly Klimberg e Iaçana Makeba que o digam! Sinto falta das caricatas também, hoje não temos praticamente ninguém! Não sei se o estilo drag ainda vai permanecer por muito tempo, provavelmente sim, mas isso não depende só de nós, depende muito de novas formas estéticas, coisas da moda, o que o mundo da música produzirá daqui pra frente, são mudanças pra daqui a oito, dez anos, acredito. O próprio estilo drag vem mudando...



Tu foste artista não foi? Ainda fazes shows?



Abafa!!!!! A louca!!!!! (risos) Sim, fui transformista no início da década passada, quando tinha dezoito pra dezenove anos. Fiz show seguidamente por cinco ou seis anos. Depois fui parando aos poucos. Começou por uma bricadeira de palco com a Cibele, que estava apresentando. Imitei uma cantora no palco, ela gostou, me convidou pra fazer show na semana seguinte, e aí nasceu a Greta, uma homegem minha à atriz Greta Garbo que tinha morrido naquele mês. Ganhei diversos concursos, cheguei a fazer bastante sucesso. Hoje, não sei se meu antigo estilo encontraria aplausos. Eram interpretações mais teatrais, músicas antigas, reflexo de meu gosto pessoal. Como artista, óbvio, seria capaz de me renovar e foi muito boa a experiência. Como ator, necessito muito da energia do palco e do público. Me alimenta, me renova. Minha última experiência com show foi no espetáculo o Cabaret, em abril de 2005, junto com a Victória Principal e a Rebecca McDonalds. Um grande sucesso. Mas desta vez quem fez show foi o Luciano e não a Greta.



E o movimento gay, na sua opinião, como está?



Como falei antes, tivemos muitas conquitas, nosso movimento cresceu muito e muito fez por nós, apesar de ter rachado. Mas nossas conquistas e nossa exposição na mídia não se devem somente a nós. A economia nos descobriu: somos solteiros, sem filhos e consumistas, muito consumistas. E exigentes. Pagamos caro e exigimos qualidade. O comércio e uma série de serviços se voltaram pra nós. Mas ainda temos que nos comportar. Gay consumidor pode, aquele que só ocupa espaço, correm. Certas liberdades conquistadas ainda vêm mascaradas. Na verdade não diminuiu o preconceito, apenas nos toleram mais. O triste é que isto reflete dentro de nosso próprio mundo. Nós gays, somos preconceituosos conosco mesmos. Para muitos, parece que movimento gay é somente o fervo das Paradas. Ainda custamos a entender e reconhecer nossas diferenças. Sim, porque não vai achar que gay é tudo igual, não. Somos um microcosmos da realidade. Refletimos a grande sociedade em que vivemos, cada vez mais individualista, repleta de diferenças e estranhamentos. Como cientista social fica mais fácil entender tudo isso, mas como gay, ainda fico indignado!!!



Mas Porto Alegre ainda é exemplo no movimento não é?



Sim, claro! Fomos os primeiros no Brasil a conquistar uma lei própria pra nós, direitos previdenciários, etc... Neste aspecto parecemos mais politizados que o resto do país. Mas Porto Alegre é um paradoxo! No campo cultural ainda somos provinciamos, copiando tudo o que vem de fora. O que é triste, já que o povo de nosso estado tem fama de ser mais crítico. Por que trazemos muitos artistas do Rio e de São Paulo e os nossos não passam de Florianópolis? Já que nossa cultura parece tão forte, não seria natural que tivéssemos uma cena mais independente? Porto Alegre é uma cidade maravilhosa, cheia de possibilidades que deveriam ser melhor exploradas. Deveríamos nos manter conectados com o mundo sim, mas sem perder nossa identidade local e nossas especificidades e, ao contrário, valorizá-las!



Há um refrão na Parada Livre que diz: Porto Alegre é gay! Tu concordas?



Ih! Bom, somos alegres até no nome (risos)! Sob certo aspecto sim. Nossa cidade é alegre, colorida, linda, musical! Nosso gay é melhor tratado aqui do que em outros lugares. Pro tamanho da cidade parecemos ter um contingente gay bastante razoável. E ainda tem muito gay sisudo, carrancudo e escondido por aí! Que ainda não quer se expor! Diferenças entre identidade e prática. Respeito. Nem todo mundo precisa sair por aí levantando bandeiras com um neon na testa!



Tu te assumiste quando?



Quando comecei a sair, com dezesseis anos. No início, pra minha família foi um choque, mas com o tempo acabaram aceitando e hoje acham muito natural.



Sofreste discriminação alguma vez?



Sim, várias vezes! Algumas divertidas, outras nem tanto!



O que te faz gostar de Porto Alegre?



Bom, são minhas raízes. Adoro viajar, mas com a certeza que voltarei. E pros lugares que viajei jamais encontrei, nem similar, a luminosidade que Porto Alegre assume na primavera. É lindo!