sexta-feira, 22 de abril de 2011

Bases da Arte Transformista 2 - Cultura




Salve Caríssimos!!!



Nossa! Quanto tempo estive fora do blogue!
Não pensem que abandonei meu projeto. Pelo contrário! Estive envolvido profissionalmente com outras pesquisas e, na medida do possível, tentava me dedicar as leituras necessárias para um aprofundamento nas questões de gênero e da arte transformista. Achei isso necessário pelas tantas procuras que tive, através de meu e-mail, de estudantes das mais diferentes áreas interessados em diferentes aspectos relativos à arte transformista. E pelo fato dos leitores virem dos mais diferentes campos de estudo achei necessário apresentar conceitos mais gerais para um melhor entendimento. Principalmente aqueles mais relacionados às Ciências Sociais e, em especial, à Antropologia.
Assim, depois de ter ficado esse tempo sem postar nada, quando a última postagem foi a respeito das possibilidades de ocorrência de diferentes fenômenos de transgeneração em diversas culturas e épocas distintas, começo, agora, a publicar essa série de textos acerca de fatos e instituições que foram basais e propiciaram o desenvolvimento de vários fenômenos de transgeneração em nossa cultura, com o foco final, é claro, na arte transformista. Isso, ainda, antes de entrarmos com as biografias dos artistas aqui de Porto Alegre/RS.
Portanto, como um dos primeiros desta série de conceitos, falarei, entre outros, sobre o conceito de Cultura por ser a maneira como enxergo os processos de transgeneração e por ser a linha mestra, digamos assim, das minhas análises; apesar de tangenciar um pouco o propósito do blogue, pois, afinal, tanto a sexualidade quanto as identidades de gênero nada têm de naturais, são totalmente influenciadas pela cultura e, através dela, manifestadas.
Entretanto, deixo claro que as informações aqui colocadas sobre cultura e outros conceitos afins estão propositalmente simplificadas. Descreverei da forma mais básica possível a conceituação antropológica, pois, o conceito de cultura foi se aperfeiçoando, na medida em que a Antropologia é uma ciência e, como tal, passa a se processar em paradigmas e teorias, até mesmo para dar conta da complexificação das sociedades. Também procurarei escrever de forma clara, para que todos entendam, evitando o “antropologuês”.
Bom, antes de mais nada, é preciso que se fale da Antropologia. Que ciência é essa, afinal, e por que a utilizo em minhas análises?
Bem, basicamente Antropologia pode ser definida, como uma ciência da área das humanas, próxima da História e da Economia, pertencente ao campo científico denominado de Ciências Sociais, portanto, "irmã” da Sociologia e da Ciência Política, que estuda o homem em sociedade, a humanidade em seu comportamento. Porém, não o comportamento do indivíduo como a Psicologia faz, e sim, o comportamento de grupos humanos, sejam eles de travestis, mulheres negras, comunidades urbanas, tribos indígenas, operários e camponeses, etc, ou então expressões do humano em eventos, como o carnaval, festas populares, religiosidade, ou ainda, os usos e apreensões do corpo, sexualidades, etc. A Antropologia divide-se em dois ramos: a Antropologia Física, que estuda o esqueleto humano e sua evolução biológica, portanto, próxima à Paleontologia, mais restrita à comunidade científica norte-americana e a Antropologia Social ou Cultural, afiliada a um paradigma europeu que separa Natureza e Cultura e que, desassociada da Biologia, tem como objeto questões sociais e culturais do Homo Sapiens-sapiens. No Brasil o campo científico da Antropologia filia-se ao paradigma europeu e é sobre esta Antropologia que tratarei, chamando-a, aqui, simplesmente de Antropologia.
Nasceu a Antropologia na segunda metade do século XIX, dentro do processo histórico conhecido como Imperialismo, a partir da necessidade das potências europeias, especialmente Inglaterra, França e Alemanha, de conheceram os povos que dominavam na África, Ásia e Oceania. Tendo como foco de estudo, inicialmente, os povos autóctones, ou os chamados nativos, atualmente ela se volta ao estudo da humanidade em geral. Hoje, o “nativo” tanto pode ser o indígena da Amazônia, um habitante de Copacabana, um punk ou, até mesmo, um torcedor de futebol. Superou seu passado a serviço da dominação e, por muitas vezes, presta-se ao estudo e reconhecimento dos direitos das minorias.
Mesmo sendo o/a Homem/Mulher uma unidade biológica em toda sua diversidade étnico-racial, o comportamento humano expressa-se em uma enorme variabilidade. Por isso um dos focos da Antropologia é justamente a alteridade (do latim alter = outro), isto é, o outro e sua diferença em relação ao “nós”. E é justamente no estranhamento dessa diferença que começa “o fazer antropológico”. O reconhecimento e o estudo do “outro” e suas especificidades. Especificidades estas dadas pela cultura.
A forma como um antropólogo trabalha é chamada de etnografia, que consiste, basicamente, de trabalho de campo (visita ao seu “objeto” de estudo) com observação participante, quando o pesquisador faz observações das realidades e subjetividades locais, segundo as teorias antropológicas, anotando em seu diário de campo e complementando com entrevistas semi-dirigidas, narrativas e histórias de vida.
A Antropologia (Anthropos = homem / logos = razão), difere-se de outras ciências justamente por ter como objeto de estudo aquilo que é próprio do Homem/Mulher e nos diferencia de outros animais: a Cultura. Sim, é a cultura que nos faz “animais ditos superiores” e não a racionalidade como muitos ainda supõem. Alguns animais conseguem formar sociedades, chegam a utilizar artefatos e modificam o ambiente à sua volta. Mas o ser humano é o único que dá significado e transforma aquilo que produz. Isto é Cultura.



Cultura geralmente é entendida no senso comum de duas maneiras: formas artísticas institucionalizadas e reconhecidas da expressão de um povo (muitas vezes interpretada como o aparato expressivo de uma elite erudita em contraposição ao folclore, típico do povo) e, também, como o nível e grau de ilustração e conhecimento acumulado de um indivíduo. De certa forma, nenhum dos dois conceitos estão errados, apesar de haver consequências subjetivas negativas pelo uso desses conceitos e não é intenção minha, aqui, me aprofundar nessas questões. Contudo, para nós, cientistas sociais, principalmente antropólogos, estudantes da Cultura por excelência e essência profissional, o sentido do termo é muito mais abrangente e complexo.
A palavra Cultura e sua conceituação começaram a ser desenhadas no século XVIII. Pensadores alemães utilizavam a palavra Kultur para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade. Já os franceses utilizavam a palavra Civilization quando referiam-se às realizações materiais de um povo. No final do século XIX, um antropólogo britânico, Edward Tylor (1832-1917) criou a palavra inglesa Culture e, consequentemente, o primeiro conceito de Cultura, numa espécie de síntese das duas outras palavras e suas respectivas ideias. Porém, durante muito tempo, cultura foi sinônimo de civilização, progresso, desenvolvimento e comportamento “refinado”, típico de uma elite. Por isso, ainda hoje, muitos ainda falam em cultura erudita e cultura popular, hierarquizando-as numa relação desigual.
Cultura, no sentido científico, é uma categoria intelectual de análise de dada sociedade, povo, comunidade ou coletivo humano. Refere-se a uma rede ou teia de códigos compartilhados através da qual as pessoas de um dado grupo sentem, veem, pensam, (re)significam, interpretam, ordenam, classificam, reproduzem e modificam o mundo e a si mesmas. Essa rede compartilhada no e pelo coletivo é repassada dentro de uma mesma geração ou através de várias por meio das relações sociais, da educação, da socialização e/ou da endoculturação, de forma dinâmica, não-estática e, portanto, sujeita aos processos da História, ao tempo.
Complexo? Simplificando: cultura pode ser definida em termos gerais como o conjunto de leis, valores, crenças, comportamentos e hábitos, usos e costumes e produção material e simbólica (técnica, trabalho, artes, linguagem, etc) de um determinado povo ou agrupamento humano.
No final do século XIX e primeiras décadas do XX, os cientistas acreditavam que fatores biológicos e geográficos eram determinantes na cultura. Hoje, sabemos que em nenhum momento a geografia do lugar em que o homem vive ou nasce, assim como as características próprias da espécie herdadas geneticamente, não determinam o comportamento. Assim nos parece falacioso falarmos que o brasileiro, pelo simples fato de ter nascido na região conhecida por Brasil, é um povo trabalhador ou que aqui houve intensa miscigenação racial por causa do clima tropical e que o contato sexual entre brancos, índias e negras foi propiciado pelo sol dos trópicos. Outra falácia é aquela propagada por muitos que escrevem ou comentam sobre o comportamento de homens e mulheres como algo do tipo: “mulheres são de Vênus e homens são de Marte”, ou que mulheres teriam uma noção mais espacial que os homens, ou ainda, que seriam mais ciumentas. Diferenças de comportamento entre os sexos ou lugar de nascimento devem-se à caraterísticas culturais e não ao seu aparato biológico.



Outro conceito importante dentro da Antropologia é o de Relativização. Pesquisadores ocidentais ao estudarem diversas sociedades em épocas e lugares variados puderam perceber a enorme diversidade de costumes e crenças dentre os povos do planeta. E a maioria desses costumes eram completamente diferentes dos seus. Assim, não compreendiam essas diferenças e agiam preconceituosamente em relação a esses povos. Isso se devia a crença de que nossa cultura ocidental era, em si, “A Cultura” do Homem e de toda a Humanidade, o estágio evolutivo final de toda e qualquer cultura, ou seja, índios e aborígenes um dia seriam e viveriam como nós, como se eles fossem, na verdade, um reflexo de nosso passado de “civilizados” parados no tempo.
Nos princípios da Antropologia, pesquisadores europeus, chamados evolucionistas, pesquisavam em lugares onde ainda houvesse culturas “originais”, autóctones e pensavam a cultura como “algo” que ascendia linearmente. Classificavam os povos em selvagens, bárbaros e civilizados com base no grau de desenvolvimento de seu aparato técnico. A visão de que o desenvolvimento de uma sociedade está dado em seu aparelhamento técnico-científico é algo bem próprio do pensamento ocidental. Porém, desde as primeiras décadas do século XX esse pensamento vem sendo contestado e hoje é negado. E atualmente, quando falamos em evolução humana, nos referimos à questões mais biológicas da espécie. Quando os pesquisadores e antropólogos passaram a compreender que sua cultura não é absoluta ou universal, nem superior às outras, concebeu-se o que denominamos de Relativização.
Relativizar, portanto, é colocar dois conceitos numa relação horizontal e equipará-los. Significa compreendermos, por exemplo, que não existe UMA verdade, mas várias e que “minha” verdade pode ser diferente da de outro. Quando passamos a compreender melhor este conceito e assimilá-lo em nossos pensamentos, apreensões de mundo e colocações a tendência é que nosso preconceito em relação à diversidade e a alteridade diminua.


Colado ao conceito de relativização vem outro importante para pensarmos a questão da alteridade. Trata-se da ideia de Etnocentrismo, que seria a tendência a olharmos o outro e o diferente através do olhar de nossa própria cultura, percebendo, compreendendo e julgando-o segundo valores e princípios de nosso sistema cultural. A Cultura, às vezes, funciona como as lentes de um óculos, permitindo, ou não, que enxerguemos o que está à nossa frente. Quando culturas muito diferentes estão em relação, o etnocentrismo se evidencia em choque cultural e podemos ficar, muitas vezes, horrorizados com as diferenças entre as culturas dos povos. Mas quando o choque se dá dentro de nossa própria cultura? Isso pode acontecer em culturas como a nossa, numa sociedade complexa, onde convivem diversas subculturas e que também pode estar influenciada por culturas “alienígenas” ou estranhas a ela, formando, o que chamei inicialmente, de teia ou rede complexa de códigos compartilhados. Só que muitas vezes, esse compartilhamento de códigos se dá de forma “invisível”, não estando explícito a totalidade de determinada sociedade, fazendo com que a lógica de comportamentos de alguns grupos seja desconhecida ou muito estranha a outros, podendo gerar, assim, o preconceito.
Por isso que muitas vezes é insuficiente combater o preconceito de um indivíduo apenas. É importante lutarmos contra todo um sistema cultural que impõe valores e visões de mundo que vão de encontro às minorias. E não é uma tarefa fácil. A cultura age coercitivamente na mentalidade das pessoas, isto é, os sujeitos, desde a infância, internalizam a forma de pensar dominante em seu coletivo. Por isso encontramos, entre os gays, formas de pensar e visões de mundo que vão de encontro à própria realidade homossexual, já que gays são educados dentro de uma cultura heteronormativa, isto é, com normas próprias das relações heterossexuais.
O conceito de cultura é importante ser explanado para deixar claro como se processam os fenômenos de transgeneração e o quanto estes estiveram influenciados por uma cultura homossexual, no caso brasileiro. Defendo, por meio de minhas análises, que a arte transformista só pôde surgir, nas cidades brasileiras, em função de uma realidade de gueto a que os homossexuais estavam submetidos até os anos de 1990. Confinados e restritos a poucos espaços de sociabilidade, gays, lésbicas e travestis desenvolveram um complexo sistema social e cultural de relações dentro do que chamamos de cultura urbana e que com esta compartilhava muitos aspectos, porém, pela comunidade homossexual ressignificados. Um desses aspectos, é justamente, a arte transformista, um microcosmos do mundo do glamour dos palcos e do cinema que parece ter dado liga a uma identidade homossexual durante o século XX.
Agora que o conceito de cultura está brevemente explanado, passo, nas próximas postagens, a tratar das noções mais específicas de nossa cultura no que concerne à sexualidade e aos gêneros.