segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Bases da Arte Transformista 1 - Transgeneração






Salve Caríssimos!

Bom, falar em história do transformismo é algo bastante complexo. Não há uma história universal do transformismo que seja comum a todos os povos e culturas que já existiram sobre a face da terra. Não há uma linha histórica que comporte um encadeamento de fatos numa dinâmica evolutiva e que poderiam nos conduzir à contemporaneidade do fenômeno. Mesmo porque, cada contexto cultural e histórico produziu transformismos e outros fenômenos transgêneros com qualidades e características diferentes. E, portanto, fica difícil definir exatamente o que é transformismo. O fenômeno que se processa atualmente, desde a primeira metade do século passado é mais fácil para nós contextualizá-lo. Mas e outros casos em outras épocas? Poderão ser chamados de transformismo? O conhecimento que se tem acerca do assunto ainda é pouco. Até mesmo porque, o que existe na verdade é um conjunto de elementos culturais e históricos constitutivos do transformismo que se manifestavam isoladamente até o século XIX não havendo necessariamente uma ligação entre eles e que, somente no século XX é que esse conjunto de coisas pôde se reunir possibilitando a gênese do fenômeno. Esses elementos são: os vários fenômenos de transgeneração surgidos em nossa cultura e em outras, o teatro e os rituais de transgressão e inversão de papéis e status, a indústria cultural de massas e a homocultura que se estabeleceu num desenvolvimento urbano no final do século XIX. Assim, nestes próximos textos vamos falar resumidamente de vários fenômenos de transgeneração para que possamos entender melhor a transgeneração de uma maneira geral e o transformismo de modo mais particular. Para poder entender melhor o transformismo na Cultura Ocidental precisamos entender melhor os fenômenos transgêneros, de que maneira eles podem vir a surgir e que características eles podem assumir. Os outros assuntos eu abordarei em postagens separadas.
Bom, para começarmos é bom frisar que o termo transgênero surgiu recentemente nos estudos científicos e acadêmicos dos anos 90 e tem servido como um grande guardachuva conceitual abrigando uma grande quantidade de fenômenos de “transgressão” de identidades de gênero, isto é,  aquelas identidades de gênero que estariam dissociadas da identidade sexual, inata e, portanto, “natural”. Considera-se como transgêneros os fenômenos de travestis, transexuais, transformistas, drag queens e crossdressers.
A palavra ainda não foi totalmente aceita e assimilada por considerar como critério de análise este conceito amplificado baseado apenas nessa tal “transgressão” de identidades e não estaria considerando, por exemplo, as questões políticas. Por isso, transexuais e travestis não se sentem exatamente qualificadas como transgêneros pelo fato desta palavra lhes retirar sua visibilidade política necessária na luta contra o preconceito, colocando-as lado a lado com transformistas e drag queens que não teriam as mesmas necessidades. Por isso a sigla do movimento homossexual ganhou 03 (três) “T”: LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros).
A partir de agora citarei alguns exemplos de fenômenos que chamarei de transgêneros exatamente porque estarei usando este critério único de análise. Isto é proposital, pois assim, ao trazê-los à tona, posso incentivar a crítica e a discussão e também uma nova forma de pensar e ver o fenômeno. São casos que aconteceram ou acontecem em sociedades tidas como simples, tradicionais e, portanto, sofrem uma influência cultural coercitiva muito maior que em uma sociedade industrializada, moderna e individualizada. A apreensão dos significados e simbologias culturais se dá em outro nível passando pelo coletivo, pelo todo da sociedade, ou seja, não se trata, exatamente de escolhas individuais.
Houve uma tribo indígena no interior do Paraguai, os guaiaqui, que estruturava seus papéis sociais e sexuais dicotomicamente. E isto era simbolizado por meio de seus principais instrumentos de trabalho: o arco e o cesto, já que a divisão do trabalho era dada sexualmente. Aos homens, que eram caçadores, lhes era imputado o uso do arco. Às mulheres, coletoras de frutas e raízes, lhes competia o manuseio do cesto. O uso e até mesmo tocar no instrumento pertencente ao sexo oposto era proibido. Isto funcionava mais ou menos como o carrinho e a boneca com as crianças de nossa cultura. Um antropólogo nos relata dois casos de homens guaiaqui que não podiam caçar. O primeiro, chamado Chachu não possuía um arco e não sabia caçar. Era viúvo e não conseguia esposas porque não possuía arco. Como não tinha arco não podia acompanhar os outros homens da tribo, portanto, precisou pegar um cesto e acompanhar as mulheres. Por causa disso era motivo de deboche e chacota entre todos na tribo, inclusive as crianças, chegando a perder o respeito. O segundo caso, do índio Krembéji, aconteceu de forma diferente. Krembéji também não possuía arco e por isso não podia estar entre os homens. Como trata-se de uma sociedade indígena e portanto estruturada coletivamente, não havendo espaço para a escolha individual, Krembéji também juntou-se às mulheres e pegou no cesto, porém, deixou os cabelos crescerem e passou a deitar-se com outros homens da aldeia num papel sexual passivo, isto é, para eles, transformou-se numa mulher. Os homens que o procuravam nem por isso eram considerados menos homens. Porém, Chachu, o outro membro da tribo que perdeu seu arco, este sim, era considerado menos homem, enquanto Krembéji era tratado como uma mulher, nem melhor nem pior que as outras. Coisa que talvez não acontecesse se ele manifestasse o desejo de ser ativo sexualmente mesmo que se comportasse socialmente como uma mulher.
Outro caso bem interessante para o fenômeno da transgeneração são as berdaches, integrantes de tribos indígenas da América do Norte. As berdaches são sujeitos, homens e mulheres, que dissociam os papéis sexuais dos papéis sociais de gênero. Relatos de viajantes e missionários que percorreram as regiões que hoje compõem os Estados Unidos e o Canadá contam o quanto essas berdaches eram valorizadas em suas sociedades. Às mulheres que se transformavam em homens lhes eram atribuídas força e destreza na caça genuínas; e os homens que viravam mulheres eram valorizados por sua beleza e graça. A importância dessas berdaches era tamanha que lhes creditavam o poder da cura e da profecia. Algumas viravam inclusive xamãs, espécie de mistura de guia espiritual e médico e que eram altamente valorizadas entre os membros da tribo. Infelizmente com a chegada do colonizador branco, a prática foi totalmente proibida e as berdaches, quando não eram simplesmente assassinadas, eram proibidas de manifestarem-se vestidas como o sexo oposto.



Outra manifestação de transgeneração são as hijiras na Índia e também em Bangladesh. Não se sabe muito sobre elas no Ocidente. Sabe-se que são homens que vestem-se como mulheres, porém são consideradas como um terceiro sexo. Algo como os transexuais aqui no Ocidente, mas sem haver a vaginoplastia, apenas a castração. A maioria não tem nem seios. No entanto, são indivíduos bastante respeitados, tendo o mesmo status que os idosos tem nesses países, ou seja, de pessoas respeitadas e experientes sendo considerados tão especiais que lhes pedem bênçãos em cerimônias festivas rituais, como batizados e casamentos. O curioso é que é em troca de dinheiro que se dão essas bênçãos. E assim é a forma que as hijiras sobrevivem na Índia. Curioso, não? A forma “encontrada” culturalmente para acomodá-las num mercado de trabalho! Elas prestam homenagem a uma deusa hermafrodita chamada Bahuchara Mata que pode lhes exigir, segundo a sua crença, que mantenham o celibato. Vale lembrar que não há relação com a homossexualidade, pois muitos são homens impotentes que por vergonha de não poderem procriar preferem tornar-se hijiras. Elas vivem e andam sempre em grupos. 



Aqui, no Brasil indígena, précolonial, nas tribos tupinambás, houve o fenômeno das tibiras, que eram os homossexuais masculinos, e que por serem homossexuais deviam comportar-se como mulheres; e havia também as çacoaimbaeguiras, as homossexuais femininas que comportavam-se como homens e, nos dizem relatos da época, que elas seriam as famosas guerreiras amazonas. Estes dois fenômenos também eram considerados especiais entre os indígenas, eram tidos como abençoados pelos deuses porque possuíam as almas dos dois sexos no mesmo corpo.
Estes exemplos de casos só nos mostram o quanto as sociedades humanas encontram formas muito variadas de lidar com a sexualidade e com os papéis tanto sexuais quanto sociais de gênero. Assim como nos mostram que não há vínculo direto da homossexualidade com os papéis sexuais e da transgeneração com os papéis sociais. No primeiro exemplo, dos índios guaiaqui, o papel da mulher é tão importante quanto o do homem, por isso não foi nenhuma desonra para Krembéji tornar-se uma mulher. O problema seria ele não se enquadrar no binário masculino/feminino, como aconteceu com o outro índio, Chachu, que não se tornou nem um homem nem uma mulher. Entre os índios norte-americanos e brasileiros também não havia problemas em se portarem como se fossem do outro sexo, desde que se enquadrassem no esquema binário de gênero. Já entre as hijiras pôde haver uma saída à condição binária talvez porque a sociedade indiana não esteja tão alicerçada assim num modelo binário. E também porque a espiritualidade hindu seja mais leve e livre. O terceiro sexo pode ser entendido como um karma.
Em relação à prática social da dissociação de gênero e sexo, ou transgeneração, o que podemos afirmar é que este fenômeno se manifestou em muitas culturas que já existiram além das que atualmente existem. O que vai influenciar seu surgimento, sua dinâmica, relevância e forma de ser conduzida e interpretada dentro de quaisquer sociedades é o contexto social e cultural em que este fenômeno se insere, a forma como esta sociedade estrutura seus papéis sexuais e sociais e a forma como são simbolizados esses mesmos papéis.